“Vós todos que fostes batizados no Cristo, revestistes-vos do Cristo. Aleluia” – cantou a Igreja no domingo de Natal, neste do Baptismo do Senhor, e ainda no Sábado de Lázaro, na Páscoa e no Pentecostes. Todos esses eventos – nascimento, batismo, ressurreição e envio do Espírito Santo – são faces do mesmo mistério pascal de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual ele se entrega a Si mesmo e ao seu Espírito Santo “para a vida do mundo”. E foi no nosso batismo que fomos iniciados neste mistério, que morremos e ressuscitamos com Cristo, sendo revestidos dEle, porque Cristo morreu e ressuscitou de uma vez por todas.
Tentaremos ler, por isso, o ícone do Batismo de Cristo, do qual temos uma versão em São João Baptista, para que possamos mergulhar mais no mistério pascal, mistério de cada um de nós.
Há já uns 7 anos – mais ou menos – que o presbitério da igreja de São João Baptista recebeu como pano de fundo um ícone em grande formato do Batismo de Jesus, escrito pelas Irmãs de Belém.
Embora a nossa cultura peninsular e ocidental não está muito habituada à presença deste tipo de representações do sagrado, mais características das Igrejas orientais, ao estilo da tradição bizantina, na nossa comunidade o conceito parece ter sido assimilado e, quando acrescentámos um ícone de São José, já ninguém parece ter estranhado.
A arte bizantina explora a bidimensionalidade e as suas figuras aparecem-nos como que desmaterializadas, desencarnadas, a apontar para a glória futura à qual somos chamados – é uma arte sacra que se quer libertar das coordenadas espaciais e temporais, dando antes lugar a uma sobrecarga simbólica de elementos que esperam ser lidos e interpretados.
Como pano de fundo temos uma paisagem do deserto, onde São João Baptista tinha sido chamado a “preparar o caminho do Senhor”: no entanto, este deserto foi rasgado em dois, dando lugar a uma abundante torrente de água que será boa e viva – disso são prova quer os peixes quer as pequenas verduras que começas a surgir nas suas margens.
No centro do ícone, temos Nosso Senhor Jesus Cristo, envolvido completamente pelas águas do Jordão. Segundo o Papa Bento XVI: “O ícone do Batismo de Jesus mostra a água como um túmulo de água que corre, que tem a forma de uma escura caverna, que por sua vez é o sinal iconográfico do Hades, o reino dos mortos, o inferno. A descida de Jesus a este túmulo de água a correr, a este inferno, que o envolve totalmente, é a pré-realização da descida ao reino dos mortos: ‘Tendo mergulhado na água, prendeu o que era forte'(cf Lc11,22), diz S. Cirilo de Jerusalém. E S. João Crisóstomo escreve: ‘Mergulhar e emergir são a representação da descida ao inferno e da ressurreição’.”
Ao contrário de João Baptista, que tem os 4 dedos da mão direita estendidos, Jesus tem ambas as mãos já assumindo a disposição do Pantokrátor (‘todo-poderoso’, ‘onipotente’, de pan, ‘tudo’, e kràtein, ‘dominar’ ), que, na iconografia do cristianismo oriental, se refere a uma forma de representação de Jesus, que é retratado com a mão direita em posição de bênção — com o polegar voltado para si, os dedos médio e indicador em posição oblíqua, quase vertical, e os outros dedos dobrados em direção à palma da mão. Essa posição da mão direita, com dois dedos erguidos, indica a sua dupla natureza (divina e humana), enquanto a sua participação na Trindade, como segunda Pessoa, é indicada pelos três dedos unidos nas pontas; na mão esquerda, estão habitualmente as Sagradas Escrituras.
Jesus é ainda identificado pela presença dos digramas IC XC — uma abreviatura tradicional das palavras em grego para “Jesus Cristo” (isto é, as primeiras e últimas letras de cada uma das palavras ΙΗΣΟΥΣ ΧΡΙΣΤΟΣ — escrito “ΙΗϹΟΥϹ ΧΡΙϹΤΟϹ” com a sigma lunática) – e pelo sagrado trigrama do Nome de Deus oWN, revelado a Moisés no monte Sinai (“Eu sou o existente”, Ex 3, 14).
A terra está rasgada em dois, tal como os Céus de onde Deus envia o Espírito Santo. No centro vemos Jesus, despido, como quando foi crucificado, ao mesmo tempo que aceita a vontade de Deus e assume a sua vocação de messias, que se deixa submergir pelas águas de um rio que jorra dos túmulos em terra árida e estéril; João segura na mão esquerda o rolo da antiga aliança e inclina-se para aquele de quem não é digno de desatar as sandálias; Jesus submete-se livremente à vontade do Pai de libertar a humanidade do pecado e conduzi-la à vida divina (Aquele sem pecado, aceitou ser batizado. Aquele sem culpa, aceitou ser crucificado!); Jesus submete-se a João “para que se cumpra”, como mais tarde dirá “não se faça a minha vontade”, e o Pai responde, dizendo “Este é o meu Filho bem-amado, sobre o qual ponho todo o meu agrado”, enviando seu Espírito Santo – é isso que indicam o semicírculo que vemos na parte superior e o raio que desce dele sobre Jesus; as águas, o mar, são sempre símbolo das trevas, do obscuro e tenebroso; a cena remete para o mistério pascal; Jesus, despido do homem velho, ao contrário de João que está ainda vestido (é o homem velho, o Adão, que esconde sua nudez – o Batismo em Cristo é, pois, a passagem deste homem velho ao homem novo, o próprio Jesus), abençoa as águas com ambas as mãos, tornando-as doravante fonte de vida nova. Dessa vida nova beneficia Adão (a pequena figura em baixo, à esquerda), que deixa esvaziar as suas bilhas de água ainda não renovada e que, ainda receoso e talvez surpreendido, troca o olhar com um dos anjos, preparado para o acolher. Dos outros 3 anjos, dois têm o olhar fixo em Jesus e o outro na pomba.
Abaixo do Precursor, aparece um arbusto cortado por um machado. Refere-se ao tremendo aviso de João, que é um convite ao batismo e a uma vida santa depois do batismo: “O machado já está posto à raiz das árvores: toda árvore que não produzir bons frutos será cortada e lançada ao fogo”. A árvore tem já lançado o machado à raiz: doravante, só dará fruto o ramo que vier a ser enxertado em Cristo. Toda a criação sente esta renovação: temos os peixes e os pequenos arbustos junto à margem. É a ponte entre o Antigo e Novo Testamento.
Normalmente, na arte iconográfica, o olhar é quase sempre frontal, salvo raras exceções. Este ícone é uma delas: Jesus e um dos anjos, contemplam a árvore com o machado; o anjo que está vestido de púrpura, contempla a pomba (representação do Espírito Santo); João Baptista, parece contemplar a ação ou manifestação do Espírito Santo em Jesus; quanto aos dois anjos na parte central, assim como Adão (em baixo, à direita), têm o olhar centrado em Jesus, o Filho de Deus.